Capítulo 03: A Donzela da Ruína e a Lança da Criação
Minha primeira lembrança é a escuridão. Apenas escuridão nada mais.
E, dentro dela, a consciência: eu existo.
O que estou fazendo aqui? Onde estou?
Não sei.
Mas uma coisa é certa: eu sou.
Nesse instante, a escuridão se dissipou.
Diante dos meus olhos se abriram o céu azul infinito e um campo verdejante.
Como? De onde? O que aconteceu?
E, acima de tudo… quem sou eu?
Dei um passo à frente.
A grama fez cócegas suaves em meus pés descalços, o vento acariciou minhas faces, e o meu olfato foi invadido por um buquê de aromas desconhecidos.
Tudo aquilo me causou uma impressão tão profunda que eu ofeguei e, sem entender por quê, comecei a chorar.
◆◆◆◆◆
— É isso que tenho sonhado ultimamente: minhas primeiras lembranças. Estava nesse lugar desconhecido, vaguei um pouco… e acabei encontrando o diretor — contei.
Todos ficaram surpresos, até mesmo meu marido.
E ele ficou só surpreso soltou um “oh”, mas não se mostrou alarmado, nem tentou me consolar.
Dizem que ele é o meu par, mas eu ainda não entendo o que isso significa.
Porém…
— O que foi, Arin? — perguntou ele, com um toque de preocupação.
— Nada. Só estava olhando pra você — respondi calma, embora meu coração tivesse acelerado e o calor me subisse às faces.
Sem dúvida, eram os chamados “sintomas de uma noiva apaixonada”.
— Talvez, Arin-san, você seja de outro mundo como eu — murmurou Lilith-sensei, passando os dedos pelo queixo.
Pelo que sei, ela nasceu em outra dimensão, destruída pelo próprio pai o Senhor das Trevas. Foi ele quem enviou a filha até nós.
Sensei tinha razão. Aquela escuridão onde despertei podia muito bem ter sido um mundo morto.
— O diretor surgiu do nada e disse que havia vindo me buscar.
— Ele sempre age de modo estranho… mas essas coincidências são assustadoras — comentou Lilith-sensei.
Todos assentiram.
Naquela época, eu devia ter uns oito anos. Sim, era um tanto… exagerado.
— Aliás, o diretor não mudou nada nesses anos todos.
— Ele nunca muda — observou Levi. — Deve ser magia de imortalidade. Todos os magos supremos dominam esse tipo de arte.
Então, um mago sem juventude eterna é considerado incompleto?
Tenho a sensação de já ter ouvido isso em algum lugar.
— A diretora Libera parece uma menina — lembrou meu marido.
Pelo visto, as magas fazem uso intenso das técnicas de rejuvenescimento.
Bom, ainda estou bem longe desse nível.
— Então o diretor a levou até a Academia? — perguntou Celina, retomando o assunto. Ela abriu um caderno e se inclinou na minha direção, ávida por ouvir mais.
A curiosidade é a essência de todo mago digno — e, nisso, Celina nos supera, a nós da Trindade, em todos os sentidos. Um verdadeiro exemplo a seguir.
— Sim. E no caminho fomos atacados por demônios misteriosos.
— Demônios… misteriosos?
— Ah! Já ouvi falar disso! — Yui bateu palmas. — Dizem que, às vezes, fora dos domínios da Academia, aparecem criaturas que nenhum feitiço consegue analisar.
— Eles surgem sempre que eu saio da Academia — acrescentei.
— O quê?! — exclamou Yui, confusa.
Talvez fosse melhor explicar.
— Sempre que deixo a Academia, aparecem demônios que ninguém jamais viu. Alguns conseguimos derrotar… outros, tivemos de fugir.
— O quê? “Nós”? Quer dizer… o diretor também?! — perguntou Celina, pálida.
— Sim. Ele mesmo dizia: “Sem chance. Vamos dar o fora.”
— O diretor… um mago do nível Paladino… recuando?!
Levi ouvia em silêncio, ocasionalmente levantando os olhos e nos observando disfarçadamente, mas não o bastante para que eu não percebesse.
Então ela afirmou:
— Acho que são os Outros.
Sempre me espantou o quanto Levi sabe.
Enquanto todos ficavam de boca aberta, ela já tinha entendido tudo.
Talvez fosse por ter vivido no lado sombrio do mundo… ou talvez por simplesmente compreender as coisas com facilidade.
— Sim, Levi, você tem razão. É isso que se espera de uma ninja.
— Às ninjas é dado saber muito — respondeu ela, rindo com orgulho.
Eu só descobri sobre os Outros há pouco tempo.
Se Levi se tornasse inimiga do meu marido… não quero nem imaginar.
— Quem são esses “Outros”? — perguntou ele, meio brincalhão. — Seus fãs, Arin?
— Pode-se dizer que sim. Mas, marido meu, não se preocupe: eles já não aparecem mais perto de mim.
— Ah, entendi. Que bom — respondeu ele, sinceramente aliviado.
Meu coração se aqueceu de novo.
— Mas por quê? — questionou Lilith-sensei.
Mostrei a ela o anel dentro do qual estava selado o meu grimório, Ragna Yggdrasil.
— Porque fui até lá… para obter a lança.
— Lá onde…?
— À Biblioteca da Árvore do Mundo o domínio contido dentro do Ragna Yggdrasil, que me acompanha desde o instante em que despertei neste mundo.
E então contei a elas como ousei pôr o próprio pescoço sob a lâmina e assim conquistei aquela lança.
◆◆◆◆◆
Enquanto meu marido, temporariamente designado aos inspetores, cumpria uma missão na Academia Real de Liber, eu me trancava em meu quarto, estudando o grimório desde a aurora até o cair da noite.
Meu marido crescia em poder a uma velocidade assustadora avançando firme rumo ao trono de Senhor das Trevas. Mais cedo ou mais tarde, a escuridão o consumiria por dentro.
Eu quebrava a cabeça para encontrar uma forma de salvá-lo e cheguei a uma conclusão: era preciso voltar à origem. Ao estado de “quem sou eu?”
O Ragna Yggdrasil ainda guarda inúmeros mistérios.
Magos arriscam a própria vida para decifrar suas inscrições.
Despertar a magia, estudá-la, definir um tema e obter o grimório essas são as etapas que um aprendiz deve trilhar até se tornar mago. Depois disso, pode libertar o poder do livro e entrar no modo magus.
Celina ainda não possui um grimório; tecnicamente, é uma aprendiz.
Eu, por outro lado como meu marido, já possuía um desde o início. Por isso, pulei todas as etapas e fui direto à pesquisa.
Assim, decidi retornar ao ponto de partida.
Para isso, era preciso primeiro duvidar do próprio grimório e, portanto, negar a magia nele contida.
Em termos simples, a magia é o caminho da negação.
Trilhamos contra a moral, buscando aquilo que nos falta.
No meu caso, o que me falta é… ira.
Raramente sinto qualquer emoção.
O que é a raiva? Não sei.
Ela simplesmente não existe em mim.
E foi aí que meus estudos começaram.
Depois de muitas tentativas, descobri o que é a ira — e percebi que eu não queria destruir nada.
Não havia em mim aquele impulso primordial, cego, que arrasa tudo em seu caminho.
Mas será que isso é mesmo necessário?
Por quê? Com que propósito?
Responder a essas perguntas é tão difícil quanto descobrir o sentido da vida.
Por isso escolhi como tema a Ruína.
E foi estudando-a que me tornei uma das Trindades.
— Desta vez, farei diferente.
Concentrei-me no anel onde o Ragna Yggdrasil estava selado.
Normalmente, ao injetar energia mágica, ele se transforma em um livro.
Mas, agora…
— Conectando-me ao Arquivo Ira. Manifestando o tema.
Sem recorrer ao modo magus, infundi o anel com a Ruína.
Ele brilhou em azul pálido.
Uma dor cortante atravessou meu corpo.
Sem exagero: o mago e o grimório são um só corpo e alma.
A Ruína começava a me corroer por dentro.
O Ragna Yggdrasil é feito para destruir qualquer matéria.
Que macro será que se ativou agora? Preciso verificar…
Mas, antes que pudesse pensar, uma onda colossal de energia atravessou-me.
Minha rede nervosa ardeu e se desfez;
agulhas incandescentes correram por minhas veias;
lâminas afiadas despedaçaram meus órgãos;
um martelo invisível esmagava meu crânio.
Dentro de mim, fervia o conceito puro de Ruína.
Não resisti à dor e desmaiei.
"Talvez eu não seja uma maga tão forte assim…", pensei antes que a consciência se apagasse.
Quando despertei, estava em um lugar estranho.
Mais precisamente, dentro de uma árvore.
Uma árvore gigantesca, tão grande que abrigaria toda a Academia e mais de uma, se fosse o caso.
As paredes, talhadas com perfeição, formavam prateleiras repletas de livros.
— Onde estou? — murmurei.
— Bem-vinda à Biblioteca da Árvore do Mundo, maga — respondeu uma voz feminina.
Virei-me e vi uma cavaleira vestida com uma armadura verde, perfeitamente ajustada, que em nada limitava seus movimentos.
— A Biblioteca da Árvore do Mundo… — repeti. — O sagrado lugar onde se guardam todos os saberes sobre as Runas. Pensei que tivesse desaparecido na época do Ragnarök.
— Correto. Rápida de raciocínio — disse ela. — Não esperava menos de uma maga que conseguiu chegar até aqui. Usou magia de autodestruição em busca da verdade. Interessante. Surpreendente. O que te trouxe até este lugar?
— Preciso de poder. A qualquer custo. Não há outro motivo. — Estendi a mão.
A cavaleira empunhava uma lança de ponta em espiral provavelmente Gáe Bolg, a arma lendária que amplifica a magia rúnica. Para as minhas Runas do Caos, não poderia haver instrumento melhor.
— Você é Scáthach, fundadora do Estilo das Runas do Caos?
— Infelizmente, não. Sou apenas um fragmento de sua vontade, uma lasca de sua alma ligada a este plano. Nem sei se a verdadeira Scáthach ainda vive… — respondeu ela, dando de ombros. A armadura tilintou, como uma lata rolando pelo chão.
Ela parecia relaxada, mas eu sabia o quão perigosa era mais até do que um demônio supremo.
— Então, maga em busca de poder. — prosseguiu. — Você quase se destruiu para alcançar a Biblioteca da Árvore do Mundo, o núcleo do seu grimório. O que deseja, de fato?
O que eu desejava?
A força pela qual suportei dor e risco tanto do corpo quanto do grimório.
— Dizem que somos um par, mas no começo eu não compreendia o que isso significava.
— “Ele”? Fala do candidato a Senhor das Trevas?
— Sim. Vi e percebi muitas coisas, mas nunca consegui entender completamente. No entanto, aprendi muito sobre ele.
Ele não consegue ficar parado; está sempre sorrindo.
Pensa primeiro nos outros, mesmo quando está ferido.
Fica adoravelmente sem graça, mas é sério quando precisa ser.
Sua energia e entusiasmo transbordam.
Posso listar infinitas qualidades.
— Agora quero ser útil para ele. Carregar parte de seu fardo.
— Entendo. Você ama e, por isso, busca poder. Muitos magos em seu lugar enlouqueceriam, mas você manteve a razão.
— Se eu me deixasse levar pela loucura, não teria me tornado a Trindade da Ira.
— Justo. Você é interessante. Gostaria de ver esse candidato que conquistou tanto o seu coração… através desta lança, — disse o fragmento de Scáthach, girando o Gáe Bolg.
Se desejas poder, demonstre tua determinação, tua vontade.
É a lei imutável da magia.
— Então me conceda a lança. Conectando-me ao Arquivo Ira!
— Assim, de graça? Não posso. Conectando-me ao Arquivo Ira!
Meu anel transformou-se em livro; a lança dela, em luz azulada.
Há apenas um Arquivo venceria quem melhor o compreendesse.
— Manifesto o tema! — gritamos em uníssono.
Sob nossos pés, círculos mágicos de runas começaram a brilhar.
Nos duelos entre praticantes das Runas do Caos, vence quem tem melhor compatibilidade de macros.
Eu conhecia bem o Arquivo Ira e ter possuído um grimório desde o nascimento neste mundo me deu vantagem.
Eu iria conseguir.
Comecei com a runa que mais dominava:
— Tiwaz!
No centro do meu círculo, surgiu o símbolo em forma de seta para cima estabilizando os fluxos de energia e amplificando meus feitiços.
Até então, eu pouco me interessara por competir.
Nem mesmo via meu marido como “meu e somente meu”.
Bastava estar ao lado dele e ver seu sorriso.
Talvez, por isso, a vitória a essência de Tiwaz não me fosse natural.
Eu não queria triunfar a qualquer custo, pisando em outros, destruindo tudo no caminho.
Essa é uma ideia contrária à minha natureza.
Teria de estudar isso depois…
— Eu também escolho Tiwaz.
A mesma runa brilhou sob os pés de Scáthach.
Nossos feitiços se anulariam mutuamente.
Ergui a mão e desenhei outra runa no ar:
— Kenaz!
Um fluxo de chamas envolveu a cavaleira… mas ela traçou o mesmo símbolo e extinguiu meu fogo com o dela.
Não apenas Tiwaz, mas também Kenaz…
Não era coincidência. Ela repetiria todas as minhas runas.
Não sei que magia era essa, mas eu teria de superá-la.
Minhas reservas de energia não eram infinitas e eu precisava vencer.
— Nesse caso…
Nos últimos dias, meu marido vinha treinando até a exaustão.
Para acompanhá-lo, fiz pesquisas secretas e criei um novo macro.
Era hora de colocá-lo à prova.
— Uruz!
A runa em meu círculo mudou.
O poder bruto caiu, mas isso era irrelevante agora.
Um fluxo de energia pura explodiu de dentro de mim.
Uruz é uma runa reescrita de Ur.
Enquanto Ur absorve a força não utilizada e a superaquece, Uruz amplifica esse efeito.
Por um breve instante, meu nível alcançaria o de Yui uma Cardinal.
Mas havia um risco: se eu não apagasse a runa a tempo, transformaria-me em um demônio.
— Oh… uma runa reescrita, e ainda por cima suicida! — elogiou Scáthach sob o elmo.
Mas eu ainda não tinha terminado.
— Fehu!
Com a mão esquerda, tracei a runa que significa “gado”.
— Eihwaz!
Com a direita, uma runa reescrita que simboliza o “teixo”.
O primeiro símbolo virou uma flecha de luz; o segundo, um arco.
A essência da magia está na tríade.
Três tipos de feitiços combinados não se somam por três mas por trinta e três.
Guiada por esse princípio, uni a runa de fortalecimento, a flecha de luz e o arco da morte e renascimento.
Uma combinação capaz de derrubar até mesmo um demônio supremo.
Mas à minha frente estava o fragmento da própria fundadora das Runas do Caos.
— Naturalmente, você não teria chegado aqui se não fosse capaz disso — disse ela.
Ela evocou as mesmas runas e ergueu o arco.
Scáthach, há muito, ultrapassara esse nível.
Por um instante, hesitei.
E paguei o preço.
— Parece que é o fim. Retorne ao seu mundo. Odal!
Acima da minha cabeça brilhou a runa do retorno aquela que envia o alvo de volta à sua origem.
Nas profundezas dela, vi… trevas e vazio.
Entendi: eu não voltaria à Academia, onde havia paz, meu marido e meus amigos o lugar onde conheci a felicidade.
Voltaria ao mundo das sombras, do nada e da solidão.
— Odal!
Apressada, apaguei Uruz, Fehu e Eihwaz, e desenhei a runa de retorno mas… o feitiço falhou.
O fragmento de Scáthach nascera ali, dentro da Biblioteca da Árvore do Mundo.
Eu não poderia derrotá-la.

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